quarta-feira, 27 de maio de 2009

- É difícil. - Ela diz, rapidamente, para acabar de uma vez com a tortura. Respira profundamente, condição para sentir-se ainda viva. - No fundo, no fundo, acho que gosto de perder. Sou uma daquelas masoquistas incuráveis e terrivelmente insanas. Perco tudo: as chaves, o trabalho, o talento que eu acreditava possuir, a sanidade, o dinheiro, os amores, o peso, e até a vida eu perco.
Tenho uma necessidade exagerada, extrema, de falar sobre perda, talvez porque eu as colecione. Preciso falar sobre tudo aquilo que dói. Conhece aquele nó na garganta que só cresce e sufoca? Eu estive sufocada por muito tempo, e acho que por enquanto, eu tenho o direito a respirar. No mínimo, o direito a um último suspiro...

Era a vontade de ter no corpo o reflexo da alma dilacerada, de abrir-se para o infinito, e mostrar o coração, aos gritos:

- Eu sinto!

A humanidade inteira e os céus vão pranteando pelos pedaços arrancados. Tudo tem o ritmo da calmaria entre as tempestades. A água ainda cai das folhas, e as nuvens estão saturadas novamente.

Os passos são ligeiros, mas não acompanham o mundo, nem têm solo onde pisar. O sol brilha e viaja em todas as direções a um só tempo, zombeteiro. O caminho é conhecido, mas não existe mais direção a seguir.

Alguém bate à porta. O ciclo recomeça, ela já viu todo o círculo das vidas possíveis repetindo-se. À porta, encontra-se sempre um mensageiro. Hoje é o serviço funerário. Amanhã serão os pregadores. Ontem foi a criança. Hoje antes de tudo. Hoje, e não a véspera do precipício.

Mas ela ainda acalenta a criança, sem se importar com o passar do tempo, com o passar dos anos. Mal percebe que a criança agora fez-se adulta, rápido demais. Desespera-se ao ver o adulto com as malas prontas, deixando o abrigo que ela considera mais seguro. Os dois estão mais despertos do que nunca.

Ela move os lábios, lutando para dizer todo o necessário. Toda a verdade. Faz isso em frente ao espelho, com olhos mareados e o cabelo solto, lembrando-se sempre. Recordando que aquela criança por ela acolhida, nutrida e aquecida, apreciava cada nuance dela. Cada rompante.

Mesmo nas inseguranças, quando ela acordava sobressaltada de um pesadelo, a criança mostrava-se um homem feito, por vezes. Em outras, era apenas um garoto agarrando-se e compartilhando do espanto ante a grandeza opressiva da vida.

Por hoje, ela cala a música e promete não se martirizar com arrependimentos. Precisa apenas fazer todas as confissões, então se calará pelos próximos dois ou três dias, antes de voltar ao mundo.

Este ano, ela não levará flores. Não tem tempo. O problema sempre fora esse, o tempo... Teme que o fantasma das recordações empalideça ainda mais, e reste só o sofrimento e a saudade. Então ela lembra-se dos sonhos, e se dá conta de que é hora de deixá-lo partir. É hora de deixar que tudo movimente-se sem interferências.

Dois anos a modificaram demais. No início, quando a mudança foi a reclusão e a recusa a tudo, e agora. Agora, ela retoma a vida, retoma as cores suaves sobre o branco, retoma a caneta sobre o papel, retoma a postura que sempre foi dela. Ela retomará a música e dançará com as nuvens e as estrelas, carregando flores. Dentro de alguns meses, talvez ela retome sua voz. Ela precisa viver por ele, que não teve chance.

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