sábado, 16 de maio de 2009

Almíscar

Persistente. Era o melhor adjetivo que a perfumista encontrava para o componente geralmente utilizado para fixar as demais fragrâncias. Utiliza-se o mínimo, sempre, e mesmo assim o cheiro impregna tudo por muito tempo. Almíscar tem cheiro de nostalgia.

A bolsa caiu pesadamente sobre a mesa. Ela tentava conter-se. Tentava manter longe o impulso de correr sem rumo no apartamento pequeno. Estava dividida entre vontades.

Queria ficar ali, resguardada dos olhares de piedade, desaparecendo dela mesma e de suas lembranças. Às vezes queria fugir, mas...para onde? Queria fugir para o esquecimento. Para um lugar onde não existissem flores em túmulos duas vezes por mês, nem conversas no escuro com fantasmas. Para algum lugar fora do mundo.

Luzes fora do mundo, e a metrópole acordando vagarosamente. Gente que parte de casa sem pensar, por obrigação e condicionamento, depois da madrugada em claro. Luzes do mundo por toda a parte...

Sem cobrar de si explicações, ela acendeu uma vela aquela noite. A cera, o barbante e o fósforo. Não sabia que a combinação poderia ser apreciada, e descobria que a mesma era mais do que bem-vinda. Descobria que certas coisas possuem uma delicadeza ímpar, quando permitia que elas fossem contempladas.

Havia um segredo para a contemplação: não deveria durar demais. Nunca estender a contemplação por tempo superior a meia hora. Algumas coisas necessitavam de uma atenção maior; então ela detinha-se por mais tempo. As mais simples, entretanto, precisavam apenas do necessário: o suficiente para tocar.

Até o tormento é belo.

A vizinhança refletia as almas, íntimos desconhecidos. Na tarde do salto, a pianista tocou um noturno. O compositor ensaiava uma overdose. A bailarina exibia o semblante pálido do segundo ato de Giselle. O filósofo quase voara, com os pés suspensos a um palmo do chão, e a corda no pescoço. Todos deixando algo quase belo no final.

E quanto a ela, a perfumista... Restou-lhe o cheiro de solda. O cheiro da forja da vida. Alucinações, e um fino fio de gratidão quase desvairada. A certeza férrea de que ela poderia moldar o destino, qualquer que fosse.

Havia o ímpeto de desistir, a vontade de desaparecer de tempos em tempos. Começava a refugiar-se nos odores. Florais lembravam sonhos. Cítricos, uma tarde de verão. Almíscar estava sempre misturado a tudo, sem perder força.

Sonhava com lembranças inventadas.

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