Fiz do ato de sentar-me à frente do jasmineiro um ritual, ao longo de dez anos. Ainda me vejo em suas flores e folhas que caem a esta altura do ano - elas perdem o viço, murcham, e finalmente caem - quando as chuvas param e o céu se cala. O que compreendo agora, ao observar o lento declínio, é que não sou as flores ou as folhas. Sou como o jasmineiro. E, ano após ano, perco o brilho - mas continuo firmemente fincada - aguardando o próximo ciclo de ver nascer e de perder os meus jasmins.
Tornou-se um local sagrado para mim. O pequeno e singelo templo de um deus que desconheço. É o memorial para o primeiro amor. Um longo e fino fio conecta-se ao meu passado e ao meu presente, emaranhado de lembranças e sentimentos. Um local que tornou-se o museu de minha juventude.
Aqui, e apenas aqui, permito que a minha memória ganhe seus contornos mais reais e mais fiéis. É um local sagrado, e as lembranças não me atingem com golpes de tristeza.
Venho até aqui quando preciso tomar alguma decisão, mas não é ao templo inventado que me dirijo. A sombra do Escritor ainda parece estender-se pela grama em um dia de sol. Era a ele a quem eu recorria.
Não acredito no conceito de alma-gêmea. Talvez existam várias almas-gêmeas para cada pessoa, vagando pelo mundo, aguardando o momento de entrarem em suas vidas. Porém, se há algo semelhante a isto, foi o que o Escritor representou - e ainda representa - para mim. Nós nos amávamos. Compreendíamos um ao outro. Éramos parte um do outro. E, em poucas horas, parte de mim foi arrancada de meu ser.
Foi por causa dele que adotei a prática de escrever diários. Organizar os manuscritos fora de ordem quase me levou à loucura, tanto pela desordem dos escritos quanto aquela que assolava o meu coração e a minha mente. Eu precisava de um pouco mais do que apenas numerar e catalogar páginas, e depois enviá-las para a editora.
Sei muito bem o que preciso fazer, mas não quero. Há um último livro não publicado. Incompleto. E há aquela que eu talvez jamais mostre ao mundo.
Imagino-me preenchendo lacunas e colocando o ponto final no último romance deixado para trás. Não sou uma escritora, porém, e considero tal pensamento uma ousadia imensa. Por outro lado, alguém precisa fazê-lo.
Meus dedos percorrem a lombada do livro cuja leitura permanecerá inacabada. Deslizo-os até o marcador. Desvio o olhar, incapaz de encarar as letras. Outro ato inacabado.
Estamos separados... No entanto, continuamos protagonizamos essas pequenas peças. O Escritor deixou-me com as pequenas tragédias cotidianas.
É sempre uma pequena tragédia acordar sem esperanças, mas a minha vida está aqui. De alguma forma, encontro-me fincada, assistindo ao transcorrer do tempo.
Escuto o arrastar de ponteiros de relógio, e todos os segundos parecem um desperdício. Com tal pensamento, tomo uma decisão. Algo precisa ser mudado. Eu preciso me ver mudada.
Tenho medo e estou sozinha. Desamparada. Sei, porém, que posso prosseguir. Minhas mutações já aconteceram.
Agridoce
quinta-feira, 28 de maio de 2015
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Existem pouquíssimas coisas que podemos dizer para os outros. Algumas são duras demais para escaparem da prisão crítica de nossa auto-censura. Muitas simplesmente nos envergonham. Outras coisas, teimosamente, insistem em prender-se em nossas gargantas e em nos sufocar.
Eu tenho um talento especial em sufocar-me com as palavras. Como se nada fosse me atingir, pelo simples fato de calar-me. A verdade é que eu estou intoxicada com meu silêncio. Você acaba se afogando em segredos, mais cedo ou mais tarde.
E a dor, a dor persistente que você teimava em ignorar, apenas cresce e exige atenção. Neste momento, é tarde demais para que eu busque ajuda. Há tempos comecei a afogar-me, e jamais quis sair das águas turbulentas da memória.
Resta-me provocar um dilúvio. Restam-me as palavras. Incompletas e desconexas, como as de uma demente.
A sanidade escapou-me pelos poros.
Eu tenho um talento especial em sufocar-me com as palavras. Como se nada fosse me atingir, pelo simples fato de calar-me. A verdade é que eu estou intoxicada com meu silêncio. Você acaba se afogando em segredos, mais cedo ou mais tarde.
E a dor, a dor persistente que você teimava em ignorar, apenas cresce e exige atenção. Neste momento, é tarde demais para que eu busque ajuda. Há tempos comecei a afogar-me, e jamais quis sair das águas turbulentas da memória.
Resta-me provocar um dilúvio. Restam-me as palavras. Incompletas e desconexas, como as de uma demente.
A sanidade escapou-me pelos poros.
terça-feira, 4 de setembro de 2012
Ceifar
Quem poderia imaginar? Como poderíamos imaginar? Com uma crueza inacreditável, vem a foice.
– Supere – dizem-me, como se fosse imperativo não apenas superar, como também esquecer. – Ele se foi.
Ainda te procuro em cada palavra tua, a cada esquina sigo teus passos.
Refaço os passos que percorríamos todos os dias.
Danço e me lembro.
Sento-me sob a mesma árvore, testemunha de nossas juras apaixonadas.
Minhas lágrimas nunca foram tão sentidas.
Nem no dia em que te foste.
Ontem, sonhei que levava flores. Os mesmos jasmins-testemunhas do nosso encanto. Nosso encanto, que deveria ser eterno. Quando acordei, me vi confundindo o sonho com a realidade, e me senti na obrigação de visitar teu túmulo.
Dormi sobre mármore frio esta noite.
E fui deixada com o maior dos desalentos.
segunda-feira, 13 de junho de 2011
As palavras que você dirigia a mim eram sempre as mais amenas e belas. Com todo o resto, contudo, você conseguia ser terrivelmente amargo. Conheci todas suas facetas.
Guardamos nossa alquimia de corpos, palavras, sons e movimentos como se disso dependesse a manutenção da vida.
Cada sofrimento sublimava-se e todos os pensamentos eram sincronizados. Fomos um só. É por isso que me dói tanto?
A parte que me falta foi arrancada pelas mãos inábeis de um cirurgião cruel e indiferente; seja ele o destino, o acaso ou algum deus.
Não passa um dia sem que sua presença me assombre mais. Por ter se entranhado tanto dentro de mim, vejo-te em todos os lugares.
Finalmente consegui mergulhar em algumas de suas palavras. Tantas histórias incompletas...Como a sua própria vida. Não é? Deixe-me ter o consolo de considerar que sua vida está incompleta, não finda.
domingo, 12 de junho de 2011
Flores e pesares
Neste momento, cedo a um impulso. Escrevo uma carta que se perderá na areia do tempo, cujo destinatário não é palpável - mas está sempre presente.
Eu havia prometido, em algum momento, parar com tantas divagações e lamentações. Ocorre que minha alma transborda, agora, e não encontro refúgio em lugar algum.
Talvez quebrar promessas seja falha de caráter. Não vejo assim. É uma questão de princípios. Os laços da vida estão frouxos em mim - sou fiel apenas ao que sinto: única maneira de sobreviver.
Construímos nossa mitologia particular entre paredes e palavras.
Protelo a leitura do livro que você jamais terminou de ler. Nestes momentos, naquelas linhas, você se torna infinito: meu pequeno deus de mundos imaginários, que tudo é e em tudo está.
Quanto às suas palavras, guardo-as ainda, temendo que se esgotem. Deposito flores sobre seus restos, temendo que também minha memória se desgaste e eu finalmente me esqueça por completo de sua existência.
Sei que é impossível, mas aterroriza-me. Por vezes, cruzo com pessoas que dizem querer se lembrar de algum fato. Quase lhes digo que a memória é uma maldição. Mesmo assim, seguirei guardando-te junto a mim, com suas palavras-bálsamo e seu carinho. Você está imortalizado no amor que depositamos um no outro.
Tenha paciência: talvez eu siga minha vida com seu curso natural. Entretanto, por enquanto preciso apegar-me a tudo que me restou de ti. Só assim poderei me recordar, sem o pesar do inevitável.
É um mundo esfacelado agora. E todos estes sentimentos que carrego, subitamente, parecem inadequados.
Eu costumava ter um medo terrível de uma punição pela nossa felicidade. Estava certa? Será que foi algum castigo dos céus? Mártires dançam em minha direção, com suas espirais macabras de dor e sangue; rostos contorcidos e nenhuma santidade.
O sofrimento é supervalorizado. Mas o que faço, senão continuar o ciclo que critico?
Sentirei sua falta intensamente, em todos os dias da minha vida. Esta tornou-se minha verdade. Não há nada poético nisso.
Nada prepara para o momento da partida. Nem as expectativas mudas de melhora, ou os vislumbres conformistas de um fim.
Nosso quarto agora é apertado, cheira a uma doença invisível e a um desespero mudo. Minhas palavras de nada servem; sequer me consolam.
Foi ilusão imaginar que o tempo daria conta de todas as feridas. Depois de tantos anos, cheguei a pensar que havia superado. Foi questão de tempo descobrir que estava errada.
A mesma reação a longo dos anos. A mesma desesperança. Tardia, é fato, mas isto não fez com que tudo fosse mais ameno... Foi o oposto. Ainda somos marionetes de um destino cruel.
Protelo a leitura do livro que você jamais terminou de ler. Nestes momentos, naquelas linhas, você se torna infinito: meu pequeno deus de mundos imaginários, que tudo é e em tudo está.
Quanto às suas palavras, guardo-as ainda, temendo que se esgotem. Deposito flores sobre seus restos, temendo que também minha memória se desgaste e eu finalmente me esqueça por completo de sua existência.
Sei que é impossível, mas aterroriza-me. Por vezes, cruzo com pessoas que dizem querer se lembrar de algum fato. Quase lhes digo que a memória é uma maldição. Mesmo assim, seguirei guardando-te junto a mim, com suas palavras-bálsamo e seu carinho. Você está imortalizado no amor que depositamos um no outro.
Tenha paciência: talvez eu siga minha vida com seu curso natural. Entretanto, por enquanto preciso apegar-me a tudo que me restou de ti. Só assim poderei me recordar, sem o pesar do inevitável.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
Devaneios
É desconfortável, não é? Digo, essa coisa de não saber quem você é, depois de tudo. Você sabe que hoje tem um corpo, tem uma personalidade, e tudo o que as pessoas querem acreditar que existe dentro delas. Mas e quando você não se vê ali? De forma alguma... Como se não tivesse uma alma? O que se pode fazer?
Talvez o segredo seja apenas não pensar. E não falar. Não dar ouvidos ao fantasma que insiste em me perseguir... Nessas horas eu queria acreditar em alguma coisa. Qualquer coisa que me desse um pretexto para não ser taxada de louca.
Estou cansada dessas imposições de normalidade aparente. "Me deixem, preciso vagar por aí também, como a alma penada que sou..."
Talvez vida e morte sejam mesmo, ambas, completamente vazias de significado.
Por que penso nisso agora?
Morar no último andar tem suas vantagens, mesmo quando se tem fortes inclinações suicidas. Me distraio encarando as edificações abaixo.
Hoje temos um céu cinzento contrastando com uma casinha laranja berrante, com outros tantos prédios azuis, brancos, amarelos e verdes.
Sempre acontece. Sempre penso em cores, quando quero escapar. Quando tomo café demais, quando fumo demais, quando durmo pouco por dias, sempre penso em tudo como se fossem cores. Cores aromatizadas. E com temperaturas.
A casa laranja quase me queima, recende a incensos fortíssimos de templos e tempos esquecidos. O pequeno prédio amarelo é como gelo e o cheiro que atribuo a ele me lembra antigas cartas. Não de amor, nem formais, apenas cartas envelhecidas com sentimentos esquecidos.
Só encontro paz e amenidade no grande descampado verde. Começa a chover, e quase posso ouvir estalos vindos das cercas elétricas.
Ninguém está seguro, mas isso não é importante.
Surpreendo-me ao pensar no excesso de zelo de alguns com a própria vida...
E na indiferença com que trato a minha, é o que penso ao me levantar e sentir o mundo girar violentamente.
As minhas formas de anestesiar tudo não funcionam mais. Todos os dias, é um novo assombro.
Puro pavor.
E nem sei mais se realmente sinto.
Concluo que realmente sinto algo: cansaço.
Desisti de lutar contra. Pelo menos por enquanto, deixo que as memórias me invadam e me dilacerem. Melhor assim.
Não quero ser uma mártir, só quero me livrar de qualquer pecado que eu tenha cometido. É um ato de rebeldia. É como se eu me voltasse para a Inteligência Superior e A afrontasse: Vê? Eu mesma já tenho o trabalho de me punir, e sei muito bem como fazê-lo.
Mas por favor, não me deixe afundar na solidão das saudades tão pesadas. Não sei se mereço esse tipo de castigo.
Talvez sim, eu os mereça. Mas não hoje, nem agora, isso é algo que não quero sentir outra vez.
Não acredito, não vivo, não morro. Quase não respiro.
E continuo. Na superfície, eu continuo... Como os outros, correndo contra o relógio, fingindo ter propósito.
Isso passa... Essa tristeza e esse pavor sempre passam... e voltam.
Mas, antes de qualquer coisa, ainda posso sonhar?
sábado, 4 de setembro de 2010
Colecionando fantasmas
Perante esta luz imensa e glacial - selvagem - tento acompanhar o meu testemunho.
Conheci a lucidez, hoje. Pura e simples e sufocante, como o chão rachando-se sob os seus pés.
Rasgando-se em dor num mundo desabado. Tentam fugir, como coelhos. Saltam. Saltam aos olhos esses excessos, o asco.
Colecionamos fantasmas por toda parte.
Bem, isto nunca deixou de ser um crime.
Ela tem uma estrutura engraçada. Talvez eu tenha também. São os risos no momento de dor. Uma mistura de crueldade absurda com puro desespero.
"E que aprendam bem as lições da vida."
Ricocheteando.
Não tenho mais forças.
Desvairada, louca selvagem, perambulo por ruas escuras e pela consciência. Restam-me apenas perguntas e um mundo destruído. Meu pequeno mundo macerado.
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